PAULO RICARDO VELANE DA SILVA
letrasuninove@yahoo.com.br
UMA ANÁLISE SEMIÓTICA DO CAPÍTULO “A FUGA” NA OBRA VIDAS SECAS DO AUTOR GRACILIANO RAMOS
Professor orientador Dr. Ivã Carlos Lopes
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
São Paulo - 2011
Resumo: O presente trabalho visa analisar o capítulo “A fuga”, presente na obra Vidas Secas do autor Graciliano Ramos. O capítulo narra à fuga de uma família que, vitimada pela seca nordestina, acaba tendo de abandonar a fazenda onde se encontravam e partir rumo à vida, rumo ao desconhecido. Para alcançarmos nosso objetivo, utilizaremos as etapas do percurso gerativo de sentido no nível fundamental, narrativo e discursivo fundamentados no livro Teoria do discurso: fundamentos semióticos, da autora Diana Luz Pessoa de Barros. Prevê-se a apreensão do texto em diferentes instâncias de abstrações. Com isso, nossa intenção é aplicar os conceitos encarados pela semiótica como uma superposição de níveis de profundidade diferentes que se articulam segundo um percurso; isso nos permite descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz.
Palavras chaves: semiótica, discurso, percurso gerativo, narratividade, literatura.
Introdução
Este artigo é uma análise da novela “Vidas secas ", do escritor brasileiro Graciliano Ramos , sob a perspectiva da teoria semiótica francesa, construída desde os estudos de Algirdas J. Greimas até estudos mais recentes conhecidos como semiótica tensiva . A análise se dedica sobre tudo a elementos decorrentes da fuga de Fabiano e sua família, em especial o impacto da seca na vida dos elementos que constitui a família.
Nosso trabalho tem como objetivo analisar, especificamente, o último capítulo da obra, denominado “A fuga”. A fundamentação teórica utilizada para alcançar o nosso objetivo segue a teoria do discurso organizada e discutida pela autora Diana Luz Pessoa de Barros em seu livro “Teoria do discurso: fundamentos semióticos”. Procuramos aplicar uma análise que contemplasse o percurso gerativo e suas etapas julgadas necessárias para dissecar o corpus proposto: as estruturas fundamentais, instância mais profunda, em que são determinadas as estruturas elementares do discurso, a das estruturas narrativas, nível sintático-semântico intermediário, e as das estruturas discursivas, mais próximas da manifestação textual.
O que nos instigou a escrever esse artigo é a importância de percebermos que a narrativa escrita por Graciliano Ramos reflete bem a lei da vida no nordeste brasileiro no início do século XX. Os abalos sofridos pelo povo brasileiro em torno dos acontecimentos de 1930, a crise econômica provocada pela quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, a crise cafeeira, a Revolução de 1930, o acelerado declínio do nordeste proporcionou ao autor criar um estilo ficcional que oportunizou retratar o brasileiro, principalmente os sertanejos espalhados pelo país. A narrativa começa com a família de sertanejos: Fabiano, sinha Vitória, e os dois filhos do casal fugindo da seca, vagando desterrados e famintos pela caatinga até aportarem numa fazenda e por lá se estabilizarem por um tempo. Impelidos novamente pela seca, se veem obrigados a vagar pelo sertão a fora. Esta última parte da história é o nosso elemento de interesse.
Oposições fundamentais
Ao começarmos a análise semiótica, no nível fundamental, do capítulo que fecha a obra “Vidas secas”, denominado: "A fuga", é preciso evidenciar a oposição semântica a partir da qual se constrói o sentido do texto. Esse capítulo fecha a trajetória da família do vaqueiro Fabiano, formada pelo patriarca, a mulher sinha Vitória, o filho mais novo e o mais velho, a cachorra Baleia e o papagaio que foi digerido pela família. Ao longo da novela procuram fugir da seca que assola a fazenda, localizada no sertão. A narrativa se desenvolve de forma pessimista porque a morte assola a família (psicologicamente e fisicamente), em todos os cantos.
Podemos perceber algumas oposições claras no capítulo: permanecer x mudar, céu azul x morte, sonho x realidade, fé e incerteza. Mas a oposição fundamental sem duvidas é a sobrevivência x morte.
A oposição permanecer x mudar, se manifesta, na caracterização dada pelo enunciador em relação aos pensamentos de Fabiano e sinha Vitória, no âmbito do permanecer: “A verdade é que não queria afastar-se da fazenda. A viagem parecia-lhe sem jeito, nem acreditava nela. Preparara-a lentamente, adiara-a, tornara a prepará-la, e só resolvera a partir quando estava definitivamente perdido”. A incerteza e aflição tomavam conta dos pensamentos de Fabiano e sinha Vitória: “Seria certo largar tudo?” [...] “falou do passado, confundiu-o com o futuro. Não poderiam voltar a ser o que já tinha sido?” Mas, em certos instantes, acabam cedendo à realidade e decidindo por mudar aquela situação “Viver como tinham vivido, numa casinha protegia pela bolandeira de seu Tomás. Discutiram e acabaram reconhecendo que aquilo não valeria a pena, porque estariam sempre assustados, pensando na seca”.Mudar “fugir” tornava se extremamente necessário “A vida na fazenda tornara se difícil”. Diante da realidade nua e crua, orquestrada pelo destinador (céu) , Fabiano se da conta de que a fuga é inevitável “Fabiano espiava a catinga amarela, onde as folhas secas se pulverizavam” [...] “No céu as últimas arribações tinham desaparecido. Pouco a pouco os bichos se finavam, devorados pelo carrapato”. A mudança se torna inevitável, é necessário livrar-se, nem que de forma temporária, de um fardo insustentável “Não poderia nunca liquidar aquela dívida exagerada”.
Já na oposição céu azul x morte, se manifesta de forma concreta, na hora em que Fabiano observa o mudar do tempo físico: “Saíram de madrugada” [...] “No céu azul as ultimas arribações tinha desaparecido”, a vinda do dia manifesta-se como um presságio: “Antes de olhar o céu, já sabia que ele estava negro num lado, cor do sangue no outro, e ia tornar-se profundamente azul. Estremeceu como se descobrisse uma coisa muito ruim”. Enquanto ainda esta na madrugada o antissujeito seca (representado pela claridade do dia) parece ficar adormecido, o que momentaneamente funciona como um intervalo, antes do antissujeito agir. À medida que o sol vai chegando, aquele se torna intenso: “examinava o céu, a barra que tingia o nascente, e não queria convencer-se da realidade”. E ai surge à presença do elemento morte. Podemos perceber que o lexema “céu azul” deveria ter uma conotação positiva, o que se revela contrário durante a narrativa. Apesar disso, é durante o dia que a família encontra a oportunidade para prosseguir e encontrar seu objeto-valor. O sema céu revela um duplo sentido, juntando-se e ao mesmo tempo separando-se do valor positivo que engloba a palavra.
Já em relação à oposição morte, ao longo da fuga podemos destacar vários elementos presentes nas cenas que remetem Fabiano à imagem da morte, “Fabiano espiava a catinga amarela, onde as folhas secas se pulverizavam, trituradas pelos redemoinhos, e os garranchos se torciam, negros, torrados”. Animais vão sendo encontrados ao longo da saída da família da casa “os meninos atiravam cobras mortas”. Aliás, são as imagens de animais mortos que choca Fabiano prendendo-o a sua própria consciência, já tão destituída de sã consciência “A lembrança da cachorra Baleia picava-o, intolerável. Não podia livrar-se dela [...] Fabiano lembrou-se da cachorra Baleia, outro arrepio correu-lhe a espinha, o riso esmoreceu [...] A lembrança das aves medonhas, que ameaçavam com os bicos pontudos os olhos de criaturas vivas, horrorizou Fabiano”. Eis ai um momento de tensão na narrativa, Fabiano é abatido pela imagem da cachorra Baleia, que representa a morte (o antissujeito), podemos definir nessa oposição as seguintes ordenações: vida – não morte - morte. Mas é o destinador, representado pelas palavras “Luz [...] manhã [...] vegetação inimiga” que simbolizam, de forma mais impactante, a morte presente durante a fuga da família do patriarca.
A oposição sonho x realidade aparece com frequência no capítulo. Tanto Fabiano quanto Sinha discorrem seus pensamentos na fronteira do sonho e realidade. Apesar de Fabiano ser o patriarca da família, e principal sujeito da narrativa, sujeito do fazer e “ser”, é sinha Vitória quem manifesta de forma mais intensa seus sonhos “[...] queria enganar-se, gritar dizer que era forte [...] Falou do passado, confundiu-se com o futuro. Não poderiam voltar a ser o que já tinham sido? Não seria bom tornarem a viver como tinha vivido, muito longe?” Além disso, sinhá Vitória almejava uma terra nova, cheia de oportunidades, e começa a construir figurativamente seu objeto de valor (OV) “Chegaria a uma terra distante, esqueceriam a catinga [...] Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando [...] alcançariam uma terra desconhecida [...] ficariam presos nela”, os verbos no futuro do pretérito indica que o sonho é algo forte na consciência dos actantes. Fabiano compactua com os pensamentos de sinha Vitória “Sim senhor. Que mulher!”. Este só consegue manifestar sua vontade, quando sua mulher o instiga, agarrando-se a “fantasias”.
Já Fabiano permanecia na fronteira do passado e futuro “A principio quis responder que evidentemente eles eram o que tinham sido; depois achou que estavam mudados, mais velhos e mais fracos”. Além disso, acreditava no futuro, idealizado por sinha Vitória “Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era”. Sua crença em qualquer coisa que pudesse parecer uma resolução do problema, o levava a imaginar e descrever coisas “Inventava o bebedouro, descrevia-o, mentia sem saber que estava mentido”.
Ao mesmo tempo em que dividiam tais pensamentos, colocaram se a cochichar e voltaram à realidade nua e crua “Viver como tinham vivido, numa casinha protegida pela bolandeira de seu Tomás. Discutiram e acabaram reconhecendo que aquilo não valeria à pena, porque estariam sempre assustados, pensando na seca”. Nesse momento fica claro que a realidade, inevitável, prevalece em relação ao sonho; este é excluído quando os personagens acionam o mínimo de consciência diante dos fatos. Podemos definir nessa oposição as seguintes ordenações: sonho – não realidade – realidade.
Em relação às oposições fé x incerteza, podemos destacar que a fé, em especial para o sertanejo, permeia sua relação com o mundo, e no caso de Fabiano e sinha Vitória não é diferente, a fé é necessária para que se tenha pelo menos uma parcela de esperança: “manejava o rosário [...] mexia os beiços rezando rezas desesperadas”, sempre que sinha se vê diante de uma situação, fato estranho ou assustador, recorre aos elementos que despertam a fé: “Procurou com a vista o rosário de contas brancas e azuis arrumado entre os peitos”. Além disso, em situações extremas recitava um pedido: “Nossa Senhora os livrasse de semelhante desgraça” e uma oração “Deus nosso senhor protegeria os inocentes”, como se esses elementos pudessem sustentar o sonho de mudança.
E por fim, uma das oposições que mais se destaca é a incerteza. Durante todo o percurso do capítulo, Fabiano e sinha Vitória se veem diante de dois fatos: permanecer onde estavam “Arrastara-se até ali na incerteza de que aquilo fosse realmente mudança”, “[...] não seria bom tornarem a viver como tinham vivido, muito longe [...] uma grande saudade estremeceu seu coração [...] foi quando Fabiano examinava o céu, a barra que tingia o nascente, e não queria convencer-se da realidade”. Ou abraçar a ideia de que era necessário seguir como “negro fugido”. É a partir dai que Fabiano e sua família são manipulados a vislumbrar uma mudança (querer - não poder), “não voltariam nunca mais, resistiriam à saudade que ataca os sertanejos da mata”.
Além disso, Fabiano e sinha passam a “visualizar” melhor o seu objeto de valor (OV) uma nova vida “Voltaram a cochichar projetos” [...] “pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando”. Os verbos no futuro do pretérito indicam afirmação da ocorrência de um fato dependente de uma condição para a sua realização. “acomodar-se-iam [...] cultivariam [...] mudar-se-iam [...] freqüentariam [...] seriam”. A tal condição viria pela intervenção divina (representada pelo oculto, força maior, um Deus) ou permaneceria uma incerteza frente aos fatos “tudo isso era duvidoso”.
É interessante notar, nesse capítulo, que diante de tanta incerteza, restava ao destinador Fabiano julgador acreditar em alguma coisa “As palavras de sinha Vitória encantavam-no. Iriam para adiante, alcançariam uma terra desconhecida. Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era”. O sema “sonho” engloba toda essa expectativa incerta “E andavam para o sul, metidos naquele sonho”. O sema terra também engloba a significado da incerteza “Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela”.
É interessante notar que as oposições nos remetem ao nível fundamental do percurso gerativo. Esse nível fundamental compõe se de simples e abstrato, abriga as categorias semânticas que formam a base do texto narrativo, nesse nível devem ser analisadas as oposições temáticas, a euforia ou a disforia e os aspectos positivos e negativos.
Euforia x disforia: aspectos positivos e negativos
Ainda em relação ao nível fundamental do percurso gerativo, destacamos duas categorias que determinam este nível: eufóricas ou positivas e disfóricas ou negativas. No capítulo em análise, podemos perceber que há um predomínio grande dos aspectos negativos, marcado pela disforia da família do patriarca. A fuga inevitável através da fazenda e a paisagem que os cercavam era o cenário que simbolizava a presença da morte, manifestada pela vinda dos raios solares que revelavam a seca do local “Fabiano espiava a catinga amarela, onde as folhas secas se pulverizavam, trituradas pelos redemoinhos, e os garranchos se torciam, negros, torrados”, por elementos que retratam o local “os meninos atiravam cobras mortas”, “Aquela vegetação inimiga”, mais a incerteza, constante na ação dos personagens, são os aspectos disfóricos desse trecho da narrativa.
No final do capítulo, a única coisa que os mantinham vivos era o sonho de “uma vida nova” – objeto-valor – “Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando”. As palavras de sinha Vitória é o único momento eufórico da narrativa “As palavras se sinhá Vitória encantavam-no. Iria para adiante, alcançariam uma terra desconhecida. Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era.”. Assim, ficam evidentes os aspectos eufóricos e disfóricos desse capítulo da narrativa. È importante ressaltar que os aspectos positivos são marcados pela oposição do sonho frente à realidade. Manter-se sonhando com o objeto de valor (uma vida nova) “E andavam para o sul, metidos naquele sonho” é que o dá o tom da narrativa e permite a análise do percurso gerativo na narração.
Segundo Barros (1990 p.50) neste nível denominado “nível das estruturas narrativas”:
[...] as modalidades resultam da convenção da categoria tímico-fórica fundamental, [...] alteram, na instancia narrativa, as relações do sujeito com os valores. A modalização, por sua vez, deve ser entendida como a determinação sintática de enunciados: um enunciado, que será denominado modal, modifica um enunciado dito descritivo. O enunciado modal pode ser tanto um enunciado de estado quanto um enunciado de fazer, e modalizar enunciados de estado ou de fazer, indiferente.
As oposições vistas anteriormente, no nível fundamental, são assumidas como valores pelos sujeitos “actantes” que age e a transforma em sequência narrativa. Em relação às modalidades de estado e de fazer, podemos destacar o percurso canônico: manipulação, competência, performance e sansão.
Enunciados de fazer
No capítulo, pode-se observar que o enunciador prioriza as ações, levando o enunciatário a acompanhar a fuga de Fabiano e seus familiares, além de suas constantes ações para fugir do ambiente hostil, conseqüência da seca. Essas ações são determinadas pelos personagens. Tem-se claro na narrativa que Fabiano e sua família são movimentados pela fatalidade da seca. Com isso são obrigados a agir em nome da sobrevivência e busca da vida. A seca se torna a principal actante da narrativa. É ela a responsável por manipular os personagens e obrigá-los a fugir pela paisagem morta e seca, em busca do objeto-valor.
Nessa narrativa, há uma senquência de ações que é citada pela semiótica como manipulação. Nesse capítulo, e em todos os outros, é a natureza quem manipula as ações dos personagens. Os sujeitos são incitados a adquirir uma competência instantânea e constante, provocada pelo destinador. Eles se veem obrigados a agir. Fabiano e sinha Vitória, mais os dois meninos, filho do casal, adotam a modalidade do dever – querer – fazer para em uma performance “jogar-se ao mundo, como negro fugido”.
Ao longo deste capítulo, Fabiano e sua família vão em busca de uma vida melhor (ou possível). A cada instante do percurso, Fabiano e sinha Vitória lutam contra o tempo manifestado pelo nascer do sol que, figurativamente, significa a manifestação do antissujeito. Os sujeitos se veem diante da natureza e, entre ilusão e realidade; constituem-se e constituem o lugar, representado pelo (OV).
Merece destaque, também, uma não-ação dos personagens: eles não conseguem se comunicar entre si, cada um reflete, de forma monossilábica, seu ponto de vista. O pouco que falam são expressões reduzidas “[...] cochicharam uma conversa longa e entrecortada, cheia de mal entendidos e repetições [...] zumbiu sinha Vitória. Fabiano estranhou a pergunta e rosnou uma objeção”.
Enunciados de estado
“A vida na fazenda se tornara difícil”
Há neste capítulo algumas transformações de paisagem que merecem destaque. A situação na fazenda torna-se desesperadora a cada amanhecer. A matéria morta em decomposição é o cenário composto por um dever-não-ser [...] onde as folhas secas se pulverizavam, trituradas pelos redemoinhos [...] atravessaram o rio seco [...]. Fabiano e sua família se veem diante da seca que os consomem a cada instante do nascer do dia. Esse estado de degradação e seca se revela no começo do capítulo de forma tão intensa que a cada minuto o cenário é descrito de forma impactante na vida dos sujeitos “A manhã. Sem pássaros, sem folhas e sem vento, progredia num silêncio da morte”.
A situação inicial era de tamanha desolação “Procurou distinguir qualquer coisa diferente da vermelhidão que todos os dias espiava [...], Fabiano e sinha Vitória são tomados pelo antissujeito e permanecem numa mistura de quer-ser e dever não ser [...] podia continuar a viver cemitério? Nada o prendia àquela terra dura, acharia um lugar menos seco para enterrar-se. Volta-se ao plano do sonho.
Ai reside à primeira tensão da narrativa. Fabiano e seus familiares são afetados pelo antissujeito (seca) figurativamente representado pelo nascer do dia “examinava o céu, a barra que tingia o nascente, e não queria convencer-se da realidade”. Segundo (Zilberberg, 2006 apud TATIT, 2010, p.81) o acontecimento, no plano do objeto, corresponde ao sobrevir, no plano do sujeito. Para (Valéry, 1973 apud TATIT, 2010, p.81) “a alta velocidade própria do acontecimento confere ao objeto um já-ser que colide com o não-ser-ainda do sujeito caracterizado pela espera”. [...] vive-se então a hegemonia da surpresa: a velocidade verificada é maior que a velocidade presumida (Zilberberg, 2006 apud TATIT, 2010, p.81).
Percurso canônico na semiótica
As narrativas complexas se dão em quatro níveis: a manipulação (situações de dever fazer – tentação e intimidação), querer fazer (sedução e provocação). A competência é atribuída ao sujeito responsável pela transformação, este se dotada de um saber/poder. Já a performance é a fase em que ocorre a transformação e a sanção (reconhecimento ou castigo).
O percurso canônico evidencia-se de forma mais clara, neste capítulo, porque a narrativa não é complexa. É possível notarmos algumas partes no capítulo “A Fuga”: a instauração do antissujeito - o estado final de degradação da fazenda aproximidade da morte e o sonho como estado “final”. Os sujeitos acreditam que Deus, ou o acaso, manifestará uma transformação, que ainda não aconteceu, mas que se faz presente na mente da família, pois sonhar se torna a única coisa que trás vida e esperança naquele lugar.
Em relação a essa transformação, destaca-se no nível da manipulação a “tentação”, uma vez que, ao partirem atrás de melhores lugares ou terras, vão em busca do objeto-valor: “uma vida nova”. No nível da competência, a transformação realizada pelo sujeito é representada pelo tempo, dotado de um poder natural, exige dos sujeitos competências para sobreviver. No nível da performance, a parte principal da narrativa, ocorre a transformação: Fabiano, sinha Vitória e seus dois meninos seguem rumo ao desconhecido, “metidos naquele sonho [...] Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes”. Além disso, no nível da sanção, a família é vítima da incerteza “Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada”.
Semântica narrativa: modalização
Na continuação do percurso gerativo, a semântica narrativa é responsável por selecionar elementos semânticos e relacionarem com os sujeitos. Esses elementos são valores que se inscrevem nos objetos, no interior dos enunciados de estado (BARROS, 1990, p 42). A autora afirma que há duas modalizações: do ser e do fazer. Para Greimas (1979 apud BARROS 1990, p.42):
“A modalização do fazer é responsável pela competência modal do sujeito do fazer, qualificando-o para o fazer. A modalização do ser dá existência modal ao sujeito do estado, modificando o estatuto dos objetos que estão em relação com o sujeito e definindo estados passionais”.
A autora ainda evidencia que a modalidade de enunciado do fazer é responsável pela competência modal do sujeito do fazer, e pela qualificação do sujeito em direção a ação. A autora afirma haver quatro modalidades: o querer, o dever, o poder e o saber. Estes são responsáveis pela modalização do sujeito.
Modalização do ser
Essa modalização é a instancia do querer ser, o dever ser e o saber ser. Neste capítulo, há uma dúvida muita grande por parte de Fabiano e sinha Vitória em relação à situação em que se encontravam. Eles querem permanecer na fazenda “A verdade é que não queria afastar-se da fazenda”, o querer ser, mas ao mesmo tempo se veem diante da realidade “Precisava fugir daquela vegetação inimiga”, surge, assim, a modalidade do quase impossível não-pode-ser. A vida passa a ser o objeto de desejo de Fabiano e sinha Vitória, mas eles não a têm em seu panorama de visão, inserem-se no plano do “sonho”, só assim conseguem o que quer. Mesmo assim, acabam voltando à realidade por não pode ser.
Modalização do fazer
Essa categoria de modalização representa a instancia do querer fazer, o dever fazer, o poder fazer e o saber fazer. No capítulo analisado, podemos afirma que Fabiano e sinha Vitória não sabem o que fazer e nem pode fazer, Fabiano que é o patriarca da família, menos ainda. É de vontade dos dois que fosse possível mudar a realidade, transformar o lugar onde estava, mudar o cenário daquela seca. Entretanto, o que se nota é que Fabiano fica sem saber o que deve fazer: tentar permanecer ou fugir em busca de algo melhor.
Semiótica das paixões
Do ponto de vista da teoria semiótica, paixões são “estados de alma”, um “estado de coisas” leva a um “estado de alma”. Pode-se dizer que os “estados de alma” aparecem porque há sujeitos tentando entrar em conjunção com seus objetos-valores, e criam “conflitos”, “polêmicas” entre si ou, então, estabelecem entre si “situações de cumplicidade”, “de benevolência”. As paixões são definidas como modalizações do ser dos sujeitos de estado, que, no nível discursivo, aparecem concretizadas por lexemas . Segundo Greimas (1986 apud BARROS, 1990, p.43) as paixões podem ser compreendidas como o resultado de uma seqüência de “estados de alma” e nasce com a modalização do ser e do fazer.
Em uma narrativa, sujeitos ocupam diferentes posições passionais, diferentes estados. O sujeito vai de um estado de euforia para um estado de disforia ou vice-versa. As paixões podem ser simples ou complexas .
Fabiano manifesta algumas paixões ao longo da narrativa geral, especificamente neste capítulo, podemos notar a presença de algumas delas na trajetória de Fabiano e sinha Vitória. Fabiano por ser o patriarca é o principal “actante” e suas paixões decorrem da modalização do querer-ser, que é quando o sujeito quer o (OV). Este objeto-valor é sem dúvidas “uma vida nova”. Seu desejo é obter esse valor, e caso não venha a conquistar, pode passar a um estado de frustração, decepção. Na verdade não há tempo para se alcançar esse estado, pois o objeto desejado está muito distante, por isso ele só pode imaginar e acreditar. Ele passa o tempo em estado de “espera”. Como dissemos.
Segundo Greimas (1983, apud BARROS, 1990, p. 49):
“O estado inicial do percurso das paixões complexas é denominado de estado de espera. A espera define-se pela combinação de modalidades, pois o sujeito deseja um objeto (querer-ser), mas nada faz para consegui-lo e acredita (crer-ser) poder contar com outro sujeito na realização de suas esperanças ou na obtenção de seus direitos”.
A vida de Fabiano parece ser uma contínua “espera” por algo que ele não pode ter. Neste capítulo, a espera se manifesta na esfera da expectativa. Fabiano e sinha Vitória se veem obrigados a sair da fazenda, e esperam seguindo o “sonho” de encontrar o objeto de valor desejado que é um novo lugar para encostar a vida, já tão calejada.
As atitudes de Fabiano expressam a paixão de querer algo, mas não poder conquistá-lo e sua espera se constitui num outro sujeito, Deus, a própria natureza ou até o acaso, de onde ele espera que venha seu objeto-valor. Cria-se, assim, “um contrato imaginário”, ou seja, um contrato fiduciário , em que basta esperar que o outro faça. Fabiano atribui ao acaso o alcance do seu objeto-valor, permanecendo assim em constante espera ou incerteza.
Dentre as paixões simples, podemos destacar duas: a “aflição”, (espera tensa), que é o querer-ser, mas, ao mesmo tempo, o saber poder não ser. Há uma disjunção e tensão que é movida pela esperança de uma vida nova, e que, entretanto, vai voltando ao estado inicial da narrativa.
Nível Discursivo
Na terceira e última etapa do percurso gerativo, o nível das estruturas discursivas, faz-se necessário analisar as relações entre a enunciação, responsável pelo discurso produzido, e o texto enunciado. Para Barros (1990) é necessário analisar os efeitos de ilusão e de subjetividade produzidos pelo sujeito da enunciação. E por meio das oposições analisadas que os temas são revestidos de percursos figurativos.
Este nível é considerado, pela teoria semiótica, o mais superficial do discurso, porque as estruturas são mais específicas e complexas semanticamente, em relação às estruturas anteriormente analisadas. Pode-se dizer que é uma forma mais “rica” de analisar o discurso e é, nesse nível, que são determinadas as condições de produção do texto. É ai que se estabelecem as relações entre enunciador e enunciatário, segundo a autora.
Percursos figurativos
Ainda em Barros (1990) essa parte da semiótica analisa as figuras concretas que vão aparecendo ao longo da narratividade. Aqui analisaremos uma série de figuras utilizadas pelo enunciador para criar efeitos de ilusão e subjetividade. A primeira figura a ser destacada é a “catinga amarela” ou “cemitério”. Essa figura simboliza, para Fabiano e a família, a seca, a morte a desesperança que assolava a fazenda “Fabiano espiava a catinga amarela, onde as folhas secas se pulverizavam, e os garranchos se torciam, negros, torrados”. A catinga amarela é uma espécie de “divida exagerada” que tirava da família qualquer possibilidade de sobreviver naquele local. Essas figuras compõem-se em graus de intensidade: “No céu as últimas arribações tinham desaparecido [...] Procurou distinguir qualquer coisa diferente da vermelhidão que todos os dias espiava, com o coração aos baques [...] já sabia que ele estava negro num lado, cor de sangue do outro, e ia torna-se profundamente azul. Estremeceu como se descobri-se uma coisa muito ruim” e por fim “A luz aumentou”.
Em contraste a claridade que representava a seca (o antissujeito), destaca-se o lexema “madrugada”, que representa o momento em que é possível fugir do antissujeito, momento em que Fabiano e sua família estão “salvos”, nem que por algumas horas, da terrível seca. É na madrugada que a família tem a chance de andar de forma “fresca” e em “silêncio”. Aquele retira a sensação “quentura”, “calor”, predicados associados à seca, luz do dia. Aquele dá a sensação de que em silêncio o destinador preserva-se afastado dos “sobreviventes”.
O elemento fé é outra figura bem forte e presente na vida das personagens “Manejava o rosário”. Neste capítulo, tanto Fabiano quanto sinha Vitória, recorre ao elemento fé para expressar sentimentos frente às angústias “Mexia os beiços rezando rezas desesperadas”, e, ao mesmo tempo, pedir ajuda “Fabiano resistia, pedindo a Deus um milagre”. O elemento rosário retrata de forma figurativa a crença familiar no símbolo cristão “sinha Vitória procurou com a vista o rosário de contas brancas”. Este rosário torna-se o único elemento que exterioriza a esperança de sobrevivência da família “Aprumou-se e endireitou o baú, remexeu os beiços numa oração. Deus Nosso Senhor protegeria os inocentes”.
Outro elemento figurativo que certamente caracteriza bem o estado em que a família de Fabiano se encontrava é a desumanização estampada, principalmente nas vestimentas dos “sobreviventes”: [...] Os meninos à frente, conduzindo trouxas de roupa [...] o baú de folha pintada [...] cabaça de água [...] a cuia pendurada [...] o aió a tira colo [...]. É interessante notar, que essa mesma descrição é feita no primeiro capítulo da obra, denominado “A mudança”, que narra a mudança e chegada da família a um a fazenda. A repetição da descrição nos remonta ao fato de que, mesmo após o passar do tempo naquele lugar, as coisas sempre voltam a ser como eram no começo: sem trabalho, sem comida, sem água e sem saber o que fazer, “conjecturando misérias”.
Mais é na figura da cachorra Baleia que a temática da morte se figurativiza “A lembrança da cachorra Baleia picava-o, intolerável”. A cachorra representa para Fabiano a presença da morte (o antissujeito) que insiste em rondar a vida deles. Essa sensação é constante durante a narração e é re-simbolizada pela lembrança da morte da cachorra Baleia “não podia livrar-se dela”. Bicho, coisa, escravo: sua auto-imagem é construída a partir de identificações com cachorros, urubus e com o próprio papagaio mudo que a família um dia tivera. A morte dos animais e a presença deles são os elementos que por representarem figuras presentes naquele universo de seca e miséria colocam a consciência de Fabiano em constante tormenta “A lembrança das aves medonhas, que ameaçavam com os bicos pontudos, os olhos de criaturas vivas, horrorizou Fabiano”.
Para reforçar ainda mais a tensão de Fabiano, o lexema “nuvem” trás a tona antigos ressentimento e desafetos “figuras insuportáveis: o patrão, o soldado amarelo, a cachorra Baleia inteiriçada junto às pedras do fim do pátio”. O patrão representava o querer-ser de Fabiano, já o soldado amarelo, antigo desafeto, representava a humilhação a qual ele e sua família estavam expostos. A cachorra Baleia representa uma parte da família que foi tragada pela seca, portanto, não poderá mais contribuir com a família. No primeiro capítulo da narrativa, fica evidente o papel a que se sujeitava a cachorra no seio da família “ela capturou um preá e, incrivelmente não o devorou sozinha, levou-o para dividi-lo com a família”. O fato de Fabiano ter de sacrificá-la tira sua paz de consciência.
Dentro do plano figurativo sintático, cabe destacar a importância das caracterizações dos personagens Fabiano e sinha Vitória: o primeiro é descrito como portador das características “As mãos grossas [...] forte, bruto [...] os pés calosos e duros [...] rugas fundas”, já sinha Vitória era para Fabiano uma mulher de “pernas grossas, as nádegas volumosas, os peitos cheios [...] Era. Estava boa, estava taluda, poderia andar muito”. Ao repetir as características da patroa, Fabiano cria várias imagens de sua mulher, aquela que não é a que ele sempre quis ter ao seu lado, mas que aguentaria o tranco da vida.
Também merecem destaque, no percurso figurativo, os elementos da natureza “a vegetação inimiga”. Vamos elencá-los conforme a descrição do próprio enunciador:
[...] as folhas secas, a catinga amarela, terra dura, vermelhidão, quentura medonha [...]. É curioso notar que há predominância das características negativas da natureza. A situação vivida pela família de Fabiano é tão trágica, que até os elementos mais belos da natureza, deixam-no de ser, por simbolizarem a seca que os castigava ainda mais.
Sintaxe discursiva
Para a teoria semiótica, o sujeito da enunciação faz uso de uma série de opções para projetar o discurso, em busca dos efeitos de sentido que deseja produzir.
[...] os mecanismos discursivos têm, em última análise, por finalidade criar a ilusão de verdade. Há dois efeitos básicos produzidos pelos discursos [...]: o de proximidade ou distanciamento da enunciação e o de realidade ou referente (Barros, 1990, pp. 54-55).
No capítulo, em questão utilizam-se alguns mecanismos, que destacaremos aqui: o uso acentuado do discurso indireto livre e o emprego repetitivo e seqüencial de verbos no futuro do pretérito do indicativo.
Entre a representação dos vários tipos de discursos, o discurso indireto livre cria a ilusão de verdade nos personagens: “A verdade é que não queria afastar-se da fazenda”, discurso introspectivo de Fabiano em meio à fuga, afinal era tudo que ele “tinha”. Em contra partida, a realidade é a destinadora (persuasiva) de seu caminho “Podia continuar a viver em um cemitério?”. Fabiano reconhece que permanecer onde estava era um saber-poder-não-ser. A dúvida quanto ao futuro incerto são uma constante nos pensamentos de Fabiano e sinha Vitória “seria necessário largar tudo?” ambos não conseguem definir sua situação, estão a mercê da realidade devastadora, diante disso, a única possibilidade é recorrer ao lado místico da vida “[...] remexeu os beiços numa oração. Deus Nosso Senhor protegerias os inocentes”. Proteção é a palavra de ordem, a única que ainda mantém as esperanças do casal, criando, assim, uma ilusão de verdade.
Outra série de discursos indiretos livres retrata a necessidade do patriarca e sua família de manterem a ilusão, o “sonho”: “Queria enganar-se, gritar, dizer que era forte [...] ser forte era tudo aquilo que eles não eram [...] Reconhecer que a vida na fazenda fora a melhor coisa que acontecera a eles, faz parte do projeto de alimentar a certeza de que viveram uma vida? [...] Não seria bom tornarem a viver como tinham vivido, muito longe? [...]Discutiram e acabaram reconhecendo que aquilo não valeria a pena, porque estariam sempre assustados, pensando na seca [...] Não andaria sempre à toa, como ciganos [...] Ou não caminhariam?”. Certamente que sim em busca de um sonho que só era possível projetar-se na mente dos sujeitos.
Outro aspecto importante na construção dos sentidos são os mecanismos de uso dos verbos no futuro do pretérito. Após ser acordado pela esposa, Fabiano tem a “convicção” – “tudo isso era duvidoso” - de que “alcançariam uma terra desconhecida” o objeto desejado, um lugar novo, uma vida nova: “chegariam lá, beberiam, descansariam, continuariam [...]”. Tornando o sonho “realidade”: [...] acomodar-se-iam, cultivariam, mudar-se-iam, frequentariam, seriam [...]. A escolha desse tempo verbal pelo enunciador tem por objetivo introduzir o plano do sonho. Diante daquela dramática cena de miséria, Fabiano, sinha Vitória e as crianças apenas sonhavam com dias melhores ou já estavam loucos?
Conclusão
De acordo com Barros (1988, p. 41). O esquema narrativo canônico compreende os três percursos descritos, o percurso da manipulação ou do destinador-manipulador, o da ação ou do sujeito e o da sanção ou do destinador-julgador. É dentro dessa perspectiva que a narrativa se constrói, e o nosso trabalhou visou analisar o percurso gerativo seguindo a linha de análise da autora.
Percurso do destinador-manipulador percurso do
sujeito
(Dor – Dário) (S – O)
Natureza/Fabiano - família Os sujeitos visam a uma: vida nova
Durante a análise da narrativa, pudemos perceber como destinador emprega a persuasão articulada no fazer persuasivo. O destinador natureza estipula um contrato fiduciário de intimidação, instância do poder. Os sujeitos manipulados passam a dever fazer. Há, também, as oposições semânticas que constrói o sentido do texto. Em especial neste último capítulo, fica claro que Fabiano e sinha Vitória são sujeitos caracterizados essencialmente pelo fazer e pelos valores com os quais se relacionam. Destinados pela natureza, recebem uma atenção especial, como sujeitos do ser e fazer. As oposições: permanecer x mudar, céu azul x morte, sonho x realidade, fé e incerteza, geram a euforia e disforia necessárias para alterarem as relações do sujeito com os valores.
Os sujeitos, manipulados por esses valores, constroem competências para modificar os estados. A cada dia a realidade se apresenta de forma clara e intensa, sugando a vida como se aquela dinâmica da paisagem estabelece-se entre os actantes um vínculo poderoso, que é a própria vida naquela região. Fabiano e sinha Vitória arquitetam a fuga da família, são forçados pelo destinador (seca) a agir em nome da sobrevivência. Criam uma competência modal para fazer o mínimo possível, cercados de dúvidas.
Ao longo da narrativa, Fabiano e sua família são manipulados a buscarem uma vida nova (ou possível) – objeto de valor. Nessa narrativa, há uma senquência de ações, definidas pela semiótica como manipulação. Os sujeitos são incitados a adquirir uma competência instantânea e constante, provocada pelo destinador. Eles se veem obrigados a agir. Fabiano e sinha Vitória, mais os filho, adotam a modalidade do dever – querer – fazer.
querer-fazer querer-não-fazer
(vontade) (abulia)
não-querer-não-fazer não-querer-ser
(vontade passiva) (má vontade ou volição)
O dever-fazer é, assim, um querer do destinador, e o querer-fazer, um dever autodestinado. Em nome da sobrevivência, Fabiano, sinha Vitória e os dois meninos adotam a modalidade do querer-ser (sonho) e estabelecem um contrato de sobrevivência não-querer-não-ser. O quadro semiótico abaixo representa a tentativa de mudança dos sujeitos. A modalização do ser é responsável pela existência modal do sujeito, na narrativa analisada:
querer-ser querer-não-ser
(desejável) (prejudicial ou nocivo)
não-querer-não-ser não-querer-ser
(não prejudicial) (indesejável)
A catinga é o sujeito do fazer responsável por alterar a existência modal dos sujeitos de estado - Fabiano e seus familiares - principalmente quando começam a perceber a morte rondando. O objeto-valor passa pelo “sonho”: de desejável e impossível a desejável e possível “Chegariam a uma terra desconhecida [...].
Pudemos perceber também que Fabiano e sinha Vitória têm muitas paixões, e as manifestam quando tentam entrar em conjunção com seus objetos-valores. Fabiano é um sujeito desprovido de conhecimento e inteligência, sua vida se resume a criar animais “Qual era o emprego de Fabiano? Tratar de bichos [...]”, arrumar cercas e cuidar daquilo que nunca é seu. Mas ele quer (ou pensar querer) uma vida melhor, quer que “Deus Nosso Senhor” ou o acaso o dê a possibilidade de sobreviver na catinga, cuidando de sua família e seus animais. A priori esse é o sonho de Fabiano. Já sinha Vitória sonha em colocar os filhos em uma escola, viver em lugar onde pudesse criar os filhos para que pudessem aprender coisas “difíceis e necessárias” e não tivesse que ser vaqueiros de alma pequena como o pai.
Pudemos também analisar várias figuras que simbolizam e despertam
sentimentos nos actantes. A cachorra Baleia, morta por Fabiano, representa o lado irracional do sujeito, que não consegue entender porque cometeu tal ação. Fabiano segue boa parte da narrativa final, lamentando-se e tentando entender se matar a cachorra teria sido algo certo ou não. A imagem da cachorra assola a consciência de Fabiano sempre que esse para pensar ou “copiar”. O rosário representa a única esperança naquela devastação total. A fé e a reza ajudam a mantê-los em pé e são elementos indispensáveis durante a luta pela sobrevivência.
O céu, a luz do dia, a vermelhidão, são elementos responsáveis pela tensão dos sujeitos. A cada dia, a cada raio de luz solar, a cada amanhecer, o antissujeito (céu azul) devasta a vida ao redor do patriarca e sua família. Por isso acaba sendo a destinadora responsável por fazê-los correr atrás de um objeto-valor, entretanto, sempre acabam voltando ao início, ao nada. As aves locais representam a morte para Fabiano. A todo instante o sujeito tem a sensação de que será atacado por elas. Figurativamente, passa a representar a morte, a “peste” responsável pela degradação do lugar.
E por fim, podemos concluir que Fabiano e sua família são vítimas de uma dinâmica orquestrada pela mãe natureza. É ela a responsável pela manipulação de tudo aquilo que está ao seu redor “O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinhá Vitória e os dois meninos”. Mudar, mudar e mudar é a única sansão possível dada aos sobreviventes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Diana luz pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. 1ª ED. São Paulo: Ática, 1990.
________. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual, 1988.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 98 ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.
TATIT, Luiz. Semiótica à Luz de Guimarães Rosa. São Paulo: Ateliê Editorial, 2010.
ZILBERBERG, Claude. Ensayos sobre Semiótica Tensiva. Trad. Desiderio Blanco. Lima, Universidad de Lima y Fondo de Cultura Económica, 2000.
___________. Razão e poética do sentido. Trad. Ivã Carlos Lopes, Luiz Tatit e Waldir Beividas. São Paulo, Edusp, 2006a.
Sites consultados
http://www.brasilescola.com/literatura/graciliano-ramos.htm - Acessado em: 15/07/2011.
http://www.dicionarioinformal.com.br – Acessado em: 11/07/2011.
http://gracilianoramos.com.br/ - Acessado em: 05/07/2011.
sexta-feira, 29 de julho de 2011
segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011
Coesão
Coesão é a conexão, ligação, harmonia entre os elementos de um texto. Percebemos tal definição quando lemos um texto e verificamos que as palavras, as frases e os parágrafos estão entrelaçados, um dando continuidade ao outro.
Os elementos de coesão determinam a transição de ideias entre as frases e os parágrafos.
Observe a coesão presente no texto a seguir:
“Os sem-terra fizeram um protesto em Brasília contra a política agrária do país, porque consideram injusta a atual distribuição de terras. Porém o ministro da Agricultura considerou a manifestação um ato de rebeldia, uma vez que o projeto de Reforma Agrária pretende assentar milhares de sem-terra.”
JORDÃO, R., BELLEZI C. Linguagens. São Paulo: Escala Educacional, 2007, p. 566
As palavras destacadas têm o papel de ligar as partes do texto, podemos dizer que elas são responsáveis pela coesão do texto.
Há vários recursos que respondem pela coesão do texto, os principais são:
- Palavras de transição: são palavras responsáveis pela coesão do texto, estabelecem a inter-relação entre os enunciados (orações, frases, parágrafos), são preposições, conjunções, alguns advérbios e locuções adverbiais.
Veja algumas palavras e expressões de transição e seus respectivos sentidos:
- inicialmente (começo, introdução)
- primeiramente (começo, introdução)
- primeiramente (começo, introdução)
- antes de tudo (começo, introdução)
- desde já (começo, introdução)
- além disso (continuação)
- do mesmo modo (continuação)
- acresce que (continuação)
- ainda por cima (continuação)
- bem como (continuação)
- outrossim (continuação)
- enfim (conclusão)
- dessa forma (conclusão)
- em suma (conclusão)
- nesse sentido (conclusão)
- portanto (conclusão)
- afinal (conclusão)
- logo após (tempo)
- ocasionalmente (tempo)
- posteriormente (tempo)
- atualmente (tempo)
- enquanto isso (tempo)
- imediatamente (tempo)
- não raro (tempo)
- concomitantemente (tempo)
- igualmente (semelhança, conformidade)
- segundo (semelhança, conformidade)
- conforme (semelhança, conformidade)
- assim também (semelhança, conformidade)
- de acordo com (semelhança, conformidade)
- daí (causa e consequência)
- por isso (causa e consequência)
- de fato (causa e consequência)
- em virtude de (causa e consequência)
- assim (causa e consequência)
- naturalmente (causa e consequência)
- então (exemplificação, esclarecimento)
- por exemplo (exemplificação, esclarecimento)
- isto é (exemplificação, esclarecimento)
- a saber (exemplificação, esclarecimento)
- em outras palavras (exemplificação, esclarecimento)
- ou seja (exemplificação, esclarecimento)
- quer dizer (exemplificação, esclarecimento)
- rigorosamente falando (exemplificação, esclarecimento).
Ex.: A prática de atividade física é essencial ao nosso cotidiano. Assim sendo, quem a pratica possui uma melhor qualidade de vida.
- Coesão por referência: existem palavras que têm a função de fazer referência, são elas:
- pronomes pessoais: eu, tu, ele, me, te, os...
- pronomes possessivos: meu, teu, seu, nosso...
- pronomes demonstrativos: este, esse, aquele...
- pronomes indefinidos: algum, nenhum, todo...
- pronomes relativos: que, o qual, onde...
- advérbios de lugar: aqui, aí, lá...
Ex.: Marcela obteve uma ótima colocação no concurso. Tal resultado demonstra que ela se esforçou bastante para alcançar o objetivo que tanto almejava.
- Coesão por substituição: substituição de um nome (pessoa, objeto, lugar etc.), verbos, períodos ou trechos do texto por uma palavra ou expressão que tenha sentido próximo, evitando a repetição no corpo do texto.
Ex.: Porto Alegre pode ser substituída por “a capital gaúcha”;
Castro Alves pode ser substituído por “O Poeta dos Escravos”;
João Paulo II: Sua Santidade;
Vênus: A Deusa da Beleza.
Ex.: Castro Alves é autor de uma vastíssima obra literária. Não é por acaso que o "Poeta dos Escravos" é considerado o mais importante da geração a qual representou.
Assim, a coesão confere textualidade aos enunciados agrupados em conjuntos.
Por Marina Cabral
Especialista em Língua Portuguesa
Equipe Brasil Escola
http://www.brasilescola.com/redacao/coesao.htm
http://www.portuguesconcurso.com/2009/09/o-que-e-coesao-textual.html
Acessado em: 07/02/2011.
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