O livro “O pequeno Nicolau”, faz parte de uma série francesa de livros infantis, com tom humorístico, escrito pelo autor René Goscinny e ilustrada por Jean Jacques Sempé [1]. A obra foi publicada entre 1956 e 1964. Nesse contexto a França vinha de um fim de 2° Guerra Mundial, cuja guerra contra Alemanha deixou resquícios de uma Europa destruída.
Nessa ocasião tomou destaque o general Charles de Gaulle, que se se instalou, num governo provisório, dentro de uma série conflitos e negociações com as colônias. O general pediu afastamento em janeiro de 1946.
O quadro do país na década de 50 foi de um rápido desenvolvimento econômico, semelhante ao da Alemanha sua concorrente direta. Vários movimentos independentistas aconteciam na época, conduzindo a França a lutar contra. A revolução contra os Argelinos, Indochineses, Tunísia e Marrocos, deixaram uma crise grave.
Em conseqüência veio a Quinta Republica e com ela o reaparecimento de Charles de Gaulle sob a aureola de grande herói da Segunda Guerra Mundial e foi considero como o único a ter condições de por fim aos conflitos direcionado os rumos do país. Elegeu-se sob o estabelecimento do regime semi-presidencial que concedia ao presidente amplos poderes executivos.
Esse contexto de reconstrução da França em meio ao governo de um general o país adota uma concepção conservadora em relação à educação. Segundo Durkheim apud Maria Drosila Vasconcellos, o "fato social", definição central em sua teoria, deve muito às características da coerção social das instituições (religião, moral, linguagem, dinheiro…) entre as quais a educação constitui um "operador privilegiado". Por meio da educação, a transmissão dos valores, padrões e hábitos mentais de uma geração à outra está garantida de modo metódico.
A transmissão de valores ideológicos pós-guerra e, uma educação homogênea, perfaz o ensino da época, cuja característica destaca Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron. Eles consideram o sistema de ensino como um importante sistema de auto-reprodução e de reprodução sociocultural, que elucidava as funções sociais da escola e da cultura, assim como as relações que existem entre a seleção escolar e a estrutura de classes da sociedade francesa.
Dentro desse contexto e dessa perspectiva é que René Goscinny e Jean Jacques Sempé escreveram a obra infantil. O que interessa para a Análise do Discurso Francesa é como esse contexto influi na obra. O período é de uma ditadura velada, cujo ensino refletia o modo homogêneo semelhante à de um exercito onde o individualismo humano junto com suas características dá lugar ao comportamento de massa, controlado e bem definido pelas relações sociais.
O personagem Nicolau é um garoto de seis anos, muito aprontador. Suas histórias são muito engraçadas: acontecem na escola, com seus colegas. Cada colega tem seu estilo, suas manias e seus choros. Tem brigas diariamente e Nicolau acha todas muito divertidas. Ele não gosta de meninas: ele as acha muito chatas, choronas, e que só causam problemas.
Seus amigos são: Agnaldo (que é o queridinho da professora e usa óculos; então, não podem bater nele), Alceu (que come sem parar), Rufino (que tem um pai policial e fica apitando o tempo todo na sala), Eudes (um garoto muito forte, que adora dar socos nos narizes dos colegas), Clotário (o último da classe), Godofredo (cujo pai é milionário e compra tudo que ele quer), Maximiliano (que corre depressa porque tem pernas muito finas e longas, joelhos gordos e sujos), o Joaquim e o Cirilo.
ANÁLISE DE DISCURSO FRANCESA
Neste trabalho analisaremos apenas o capítulo (A visita do inspetor). O que nos interessa é detectar vestígios de ditadura da época presente na obra e destacarmos como se dá a relação professor, alunos e autoridades representantes da educação da época.
Começaremos pelo título “A visita do diretor”, que na época representava o controle do sistema educativo sobre a educação e as escolas. Esse diretor serve para garantir que o padrão estabelecido pelo regime da época se concretize dentro da escola, contribuindo assim, para a dominação do estado sobre suas instituições.
A professora, que é vítima do sistema, tem a apresentar um comportamento esperado ou exigido pelas autoridades educacionais. Juntamente com seus alunos que são comandados por ela materializam esse comportamento em suas falas “O inspetor está na escola, ela disse, tenho certeza de que vocês vão se comportar e dar uma boa impressão”.
Nesse discurso fica claro que a reprodução de um comportamento esperado que é entendido pela turma como sendo necessário. Apesar do comportamento padrão exigido pela professora que é fruto do pensamento da escola que, por sua vez, é fruto do pensamento da sociedade governada por uma concepção de educação, as crianças já adestradas sabem muito bem o que é esperado delas “... a professora não devia se preocupar, a gente quase sempre se comporta”.
A professora igualmente a um general do exército cobra seus alunos para que se comportem de acordo com o convencionado “... a professora proibiu a gente de falar sem ser interrogado, de rir sem a permissão dela, pediu pra ninguém deixar cair às bolinhas de gude”. Num contexto de pós-Segunda Guerra Mundial e estabelecimento de governos ditatoriais, revela uma reprodução dessa ditadura por parte da professora. A censura imposta pelo regime acaba podando ações isoladas, Nicolau em sua narração comenta que “Às vezes eu fico pensando que a professora pensa que a gente é bobo”, tamanha era a rédia imposta pelo sistema educacional cuja professora como destacamos é fruto de reprodução dessa ideologia.
Na página trinta e seis do livro, ao analisarmos o desenho de Sempé, o primeiro aspecto é o enfileiramento das carteiras. Esse tipo de organização é típico da concepção de homogeneização da sociedade, imposta pelo regime de Charles de Gaulle, não só dele, mas tipicamente de regimes ditatoriais.
No centro da sala a professora e o inspetor, figuras representativas do estado que impõem a ideologia necessária para a dominação. Essa dominação é garantida pela repressão necessária a manutenção do poder “... e a professora ficou brava. Eu vi você Clotário, ela disse. Foi você o autor dessa brincadeira estúpida. De castigo no canto!”. O castigo tinha a intenção de impor a autoridade ao aluno. Lembrando que a ausência efetiva de direitos humanos corroborava para a agressão. Isso é resquício de que a sociedade francesa vivia o autoritarismo e a repressão.
Tamanho era a regime educacional que até para se mover ou fazer algum barulho deveria ser medido “estes são os pequenos, eles... eles são um pouco turbulentos”. O enfileiramento determinava a educação bancária que tanto nos diz Paulo Freire[2] “... eles se sentaram de costas para o quadro-negro. O inspetor olhou para a professora e perguntou se aqueles dois meninos ficavam sempre sentados daquele jeito”. O controle coercivo e ditatorial era tão intenso que se alguma coisa estivesse fora do esperado já seria motivo para repressão. Esse comportamento do inspetor retrata como se dava às relações sociais da época.
Outro fato era que a professora também tinha medo do inspetor, ela própria era vitima da repressão. Entendemos como repressão o fato de que o inspetor é interpelado pela ideologia vigente adota pelo governo. Ele deve cumprir sua função para que tudo seja conforme a concepção de educação reprodutora e bancária presente nesse período. Esse registro é importante para entendermos o contexto da França nessa época.
Na pagina trinta e oito temos há outro desenho, onde os alunos estão sentados nas fileiras de carteiras, o inspetor em pé de frente para os alunos, olhando-os, isso nos remete a uma cena onde o superior olha para os inferiores. Todos estão apreensivos, aflitos com medo “O inspetor não parecia muito contente, ele estava com as grandes sobrancelhas bem perto dos olhos. “É preciso ter um pouco de autoridade, ele disse”. O autoritarismo está claro nas relações educacionais, o aluno obedece quem manda.
O inspetor questiona a professora “Estou vendo que a senhora tem problemas com a disciplina (...) é preciso usar um pouco de psicologia elementar”. A professora é cobrada pelo inspetor para ser mais rígida, é necessário representar o autoritarismo para que se imprima a educação necessária para manter o regime imposto. Como ressaltamos acima, a professora é “vítima” desse sistema, tendo que reproduzi-lo, acontece que ela própria não se dá conta disso. Ou seja, ela não fala, ela é falada.
O lado humorístico do narrador Nicolau é que ele insere comentários pertinentes que nos faz rir de situações cômicas, onde ele nos coloca de forma delicada no pensamento de uma criança como eles “Foi uma pena a professora ter proibido a gente de rir sem a permissão dela, porque foi superdificil segurar o riso”. Esse comentário nos coloca a perspectiva de que apesar de haver uma ditadura comportamental, as crianças conseguiam desenvolver por si suas próprias críticas.
Todo regime ditatorial, e não só os regimes ditatoriais, mas as concepções de educação fruto de ditaduras assegurado pelas nações pós-Segunda Guerra trouxeram consigo o legado da educação bancária, reprodutora, sem criticidade alguma. Esse tipo de concepção esta presente nesse contexto “A professora fez de conta que estava procurando alguém ao acaso e depois apontou para o Agnaldo: “Você, Agnaldo, recite a fábula para nós, mas o inspetor levantou a mão “A senhora permite”.
Nesse contexto social de repressão e ideologia, para o aluno só restava digerir o que era ensinado sem expor sua crítica ou entender o porque de aprender aquilo. Os alunos viviam uma crise, uma espécie de depressão ou sentimento de medo em relação ao que aprendiam e em relação à escola e sua autoridade isso fica evidente quando o Nicolau assim coloca quando o inspetor chama um aluno para recitar a fábula “Você aí no fundo, recite-me essa fábula. “Mas o que é que ele tem?”, perguntou o inspetor”.
A repressão era tanta que os alunos sofriam de pânico; reflexo de uma sociedade pós-guerra vivendo em um novo regime de repressão aos direitos de qualquer manifestação sem repressão. Diante de tudo isso o inspetor reproduz um discurso ideológico que já se perpetua à séculos “O inspetor chegou perto da professora e apertou a mão dela. “A senhora tem toda a minha simpatia, professora. Nunca percebi tão bem como hoje o quanto nossa profissão é um sacerdócio”. Podemos relacionar esse discurso com o discurso dos jesuítas cuja finalidade era o sacerdócio de catequizar os colonizados.
Em nossa análise demos ênfase à questão da repressão vivida pela sociedade francesa, principalmente na parte da educação, onde há a reprodução de valores impostos pelo estado. Outras análises poderiam ser abordadas com enfoque teórico especifico como a questão da heterogeneidade presente no discurso dos protagonistas, a questão do sujeito-autor. Nossa intenção foi apenas analisar as marcas de contexto na voz de um narrador criança.
BIBLIOGRAFIA
Brandão, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. 8° edição – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2002.
Maingueneau, Dominique. Análise de textos de comunicação. Tradução de Cecília P. Souza e Silva, Décio Rocha. – 3. ed. – São Paulo: Cortez: 2004.
SEMPÉ, Jean Jacques, Goscinny, René. O pequeno Nicolau. Martins Fontes, São Paulo, 2000.
Vasconcellos, Maria Drosila. A sociologia da educação na França: um percurso produtivo. Educ. Soc. vol.24 no.83 Campinas Aug. 2003.
[1] Sempé e Goscinny (Martins Fontes, 2000).
[2] FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Editora: Paz e Terra, 1ª Edição, 1997.
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